Entrevista com João Veridiano Franco Neto

Hoje é Dia de Luta pela Resistência dos Povos Indígenas. Por isso, nossa entrevista é sobre educação superior indígena, com João Veridiano Franco Neto. 
Ele  possui mestrado em Antropologia Social pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e bacharelado em Ciências Sociais pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). Desde 2004 desenvolve pesquisas na área de Etnologia Indígena com trabalho de campo no Território Indígena do Xingu (TIX), Mato Grosso. 
Atua como docente na Educação Superior Indígena no Sul da Bahia. Publicou, em 2022, o livro Caminhos da Fumaça: uma etnografia do xamanismo Kalapalo no Alto Xingu. É coordenador da Especialização em Educação e Interculturalidade e professor de Antropologia Social e Sociologia na pós-graduação, nas licenciaturas e nos cursos técnicos integrados ao Ensino Médio do Instituto Federal da Bahia (IFBA), Campus Porto Seguro.

1 - Como as instituições federais de ensino superior do país têm contribuído com a luta pela resistência dos povos indígenas? 
JV - As instituições federais de ensino superior, considerando aí as Universidades Federais e os Institutos Federais, contribuem direta e indiretamente com a luta dos povos indígenas. Digo indiretamente porque penso que as pesquisas realizadas sobre os povos indígenas no Brasil, nesse caso principalmente no âmbito das Universidades Federais, são significativas para a desconstrução de estereótipos preconceituosos arraigados na maior parte da população brasileira. Certamente que estas pesquisas têm limites de circulação, mas com as novas ferramentas digitais de divulgação científica, a bolha tem sido rompida de certa forma. E, como disse, têm contribuído diretamente pelas ações afirmativas, incluindo os indígenas nos cursos de graduação em diversas áreas, fomentando um ambiente de conhecimento diverso, bem como a existência de cursos superiores específicos para indígenas em várias instituições de ensino superior do Brasil.

2 - No geral, essas instituições estão preparadas para o desafio de oferecer cursos superiores aos indígenas? 
JV - Dizer que estão “preparadas” é exagero. Mas é importante acontecer mesmo sem essa plena preparação. Digo no sentido de que faltam profissionais indígenas nas instituições de ensino superior, que talvez seja sanada aos poucos com as formações de indígenas em cursos de graduação e pós-graduação; falta capacitação para o corpo docente que já compõe os quadros institucionais; as políticas educacionais e as organizações institucionais precisam ser melhoradas: tudo isso faz parte do desafio. Não sou a favor que os cursos sejam ofertados apenas depois que as preparações ideais forem efetivadas, desta forma nunca vai acontecer tal preparo, entendo como um processo. Entretanto, muito esforço tem sido despendido e avanços interessantes foram feitos, como, por exemplo, as licenciaturas interculturais indígenas. 

3 - As experiências de educação superior indígena têm conseguido abrir espaço para que eles também sejam sujeitos na construção do conhecimento? 
JV - Não posso dizer de forma generalizada, pois não conheço a realidade interna de cada curso superior indígena, mas, de maneira geral, estes cursos possuem currículos que propiciam esta construção. Especificamente na Licenciatura Intercultural Indígena do Instituto Federal da Bahia, campus de Porto Seguro, possuímos um currículo que favorece que os indígenas sejam sujeitos na construção do conhecimento: o conceito de “interculturalidade” é central no currículo. Sendo assim, a noção é de diálogo entre os saberes indígenas e os saberes ditos científicos – ou seja, da ciência “ocidental”. Esse diálogo desafia a própria noção de Ciência, pois sua universalidade é questionada de forma institucional e simétrica. Em uma aula de Introdução à Antropologia para a turma da Licenciatura Intercultural Indígena, composta por indígenas da região Sul e Extremo Sul da Bahia, sendo eles Tupinambá, Pataxó e Pataxó Hã-Hã-Hãe, um estudante questionou o porquê da Antropologia usar o termo “etnia”. O contexto da aula era questionar o termo “tribo”, que a Antropologia usou por muito tempo, mas hoje é considerado conceitualmente obsoleto, por apresentar tom pejorativo. Porém, para o estudante indígena, o termo “etnia” também não era adequado. Para ele os povos indígenas teriam de ser definidos como “nações”. Veja que a construção conceitual deriva de um diálogo intercultural. Estou até hoje com essa ideia alfinetando meus pensamentos. A noção de “formação”, igualmente, não é uma perspectiva unilateral, exclusiva aos estudantes, mas, também, aos docentes. Por exemplo, parte da carga horária dos componentes curriculares, ou seja, das disciplinas, é realizada nas próprias comunidades indígenas. Chamamos esse momento de Tempo Comunidade, ou seja, os docentes viajam para as comunidades para completar a carga horária de cada disciplina, desta forma, os docentes conhecem a realidade dos estudantes e aprendem in loco. É como se a pesquisa de campo enquanto observação participante no ato das relações de ensino-aprendizagem estivesse incorporada no currículo; e de fato, está. Há problemas? Sim, há. Acontece de não podermos ir por falta de condições logísticas da instituição, por exemplo, mas o que eu queria destacar é essa característica dos cursos, de formação multilateral e intercultural, institucionalizada. O que vejo como uma importante ruptura nas noções de currículos dos cursos superiores. 

4 - Na outra via, é possível aprender com a pedagogia dos indígenas? 
JV – Certamente. Haja vista que na atualidade estamos precisando urgentemente rever nossos modelos de relação com a Natureza. Os indígenas possuem conhecimentos milenares que apresentam modelos de relações humanos/mundo, ou humano/natureza, que favorecem o bem viver da humanidade. Ouvir seriamente e aprender com as alteridades parece ser uma dificuldade quase inabalável para as mentes formatadas por aquilo que podemos chamar de cultura ocidental. Os indígenas estão sinalizando que nosso modelo está destruindo o mundo, e só temos um, vide as palavras de Davi Kopenawa em A Queda do Céu. Não somente sinalizando, mas estão disponibilizando seus modelos, já comprovadamente mais eficazes, porém, aspectos mais essenciais à nossa sociedade, como, por exemplo, o lucro, tapam nossos ouvidos e nossos olhos. Não todos, obviamente, uma significativa parcela da população não indígena entende essa urgência, porém, somos uma parcela não hegemônica e nossas potencialidades políticas são limitadas.

5 - Você participa de um grupo de pesquisa que tem como objetivo oferecer oportunidade de debate sobre pesquisas desenvolvidas com a temática indígena na Bahia e no Brasil, mas tendo o local, no caso o sul da Bahia, como foco principal para este diálogo. Como tem sido a experiência?
Sou cofundador e integrante do Grupo de Estudo em Temáticas Indígenas e Interculturalidade (IFBA/GETII) e tem sido uma experiência gratificante e produtiva. Algumas das atividades que elaboramos no decorrer dos anos de existência do Grupo são: eventos organizados em parceria com a Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB); palestras nas quais propiciamos diálogos entre as lideranças indígenas da região e as comunidades acadêmicas; e, ainda, como resultados dos trabalhos do Grupo, lançamos coletâneas com estas características, intituladas, respectivamente, Multiverso Indígena: abordagens transdisciplinares (2014) e Educação Escolar Indígena, Interculturalidade e Memória (2019). Nestas coletâneas há capítulos que abordam as questões indígenas no Brasil e na Bahia, inclusive, com trabalhos autorais de indígenas da região. Enfrentamos dificuldades institucionais, derivadas do excesso de carga horária de aulas dos pesquisadores e das pesquisadoras que compõem o Grupo, mas aos poucos vamos caminhando. 
 
João Veridiano Franco Neto
Possui mestrado em Antropologia Social pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e bacharelado em Ciências Sociais pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). Desde 2004 desenvolve pesquisas na área de Etnologia Indígena com trabalho de campo no Território Indígena do Xingu (TIX), Mato Grosso. Atua como docente na Educação Superior Indígena no sul da Bahia. Publicou, em 2022, o livro Caminhos da Fumaça: uma etnografia do xamanismo Kalapalo no Alto Xingu. É coordenador da Especialização em Educação e Interculturalidade e professor de Antropologia Social e Sociologia na pós-graduação, nas licenciaturas e nos cursos técnicos integrados ao Ensino Médio do Instituto Federal da Bahia (IFBA), Câmpus Porto Seguro.

 

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