OS 60 ANOS DO GOLPE MILITAR DE 1964 - ENTREVISTA SÁLVIO HUMBERTO PENNA

O Golpe Militar de 1964 completa 60 anos neste 1º de abril, em meio a uma conjuntura conturbada. O país vive uma polarização sem precedentes e, há um ano e três meses, a democracia brasileira foi novamente ameaçada com os atos golpistas de 8 de janeiro. Desta vez sem sucesso.

Para comentar as conjunturas dos golpes de lá e de agora, nós entrevistamos o assessor parlamentar Sálvio Humberto Penna, conhecido em São João del-Rei pela luta incansável pelas causas populares. Luta essa que vem de longe: ex-operário e ex-militante da APML, ele foi um dos presos políticos da ditadura de 1964.

Na entrevista, Sálvio fala sobre a conjuntura que tornou o golpe de 64 possível, sobre as mazelas da tortura, os desafios da resistência, a necessidade de políticas de reparação das vítimas e da preservação da memória do período. Para que jamais se esqueça. Para que nunca mais aconteça!

1  - O golpe que deu início à ditadura militar no Brasil completa 60 anos. Qual era a conjuntura política que o tornou possível? 

O Brasil vivia em 1964 um avanço muito grande das conquistas democráticas, o movimento sindical estava avançando e se organizando no campo e na cidade. Nós chegamos inclusive a ter, na Assembleia Legislativa de Minas Gerais, três deputados operários, o que foi uma vitória muito grande: o Clodesmidt Riani, do Sindicato dos Eletricitários, Sinval Bambirra, dos Tecelões, e José Gomes Pimenta (Dazinho), que era uma liderança da Mina de Morro Velho. Três deputados operários, de origem operária mesmo. O movimento camponês no nordeste brasileiro, as Ligas Camponesas, lideradas por Francisco Julião, que nem era camponês, era um advogado, mas liderava as Ligas Camponesas, um avanço muito grande. E também em Minas Gerais, no Vale do Rio Doce, tinha  um movimento sindical camponês também forte, com lideranças fortes, e um movimento estudantil, as lutas pela hegemonia na área da exploração do petróleo, da exploração de minério, o famoso “O petróleo é nosso!”, “Minério não dá duas safras”. Isso era algumas das lutas, a gente vivia uma sensação de movimento democrático muito grande, as pesquisas apontavam que a aprovação do Governo João Goulart girava em torno de 80%, então, dificilmente ele não deixaria de ser reeleito. A gente avançou nessa questão do movimento popular, do movimento social, das conquistas democráticas, do famoso comício que fez aniversário agora dia 13 de março, o Comício da Central, em que o João Goulart lançou as reformas de base famosas. Mas ao mesmo tempo que a gente conseguiu esses avanços democráticos, a gente não pensou que o capitalismo poderia reagir. Então, não se criou mecanismos de defesa da democracia e o capitalismo estava muito assustado, dentro do Brasil, e as articulações dele com o capitalismo internacional. Hoje, existem provas concretas da influência da CIA no golpe, do deslocamento, para a costa brasileira, de navios da Marinha norte-americana para garantir o sucesso do golpe. Então, a gente não conseguiu combinar o avanço das conquistas democráticas e da organização operária e popular com uma resistência ao capitalismo. Não conseguimos, de jeito nenhum. A gente, para falar a verdade, nem pensou nisso. O único partido de esquerda organizado que existia era o PCB, que numa avaliação de conjuntura não pensou nisso, na questão da resistência a uma possível reação do capitalismo. Então, qual foi a reação do capitalismo? A tomada do poder pela força, essa que foi a reação, começou na noite do dia 31 de março de 1964 e se consolidou, na verdade, no primeiro de abril de 1964. 

2 - E como foi a resistência ao golpe?

Não houve resistência ao golpe. Não houve qualquer resistência porque, na realidade, como eu disse na resposta anterior, não havia um entendimento de que as forças da reação, civis e militares, com a ajuda inclusive internacional, não havia a possibilidade de um golpe no país. Então, não houve resistência, até pelo contrário, alguns setores mais religiosos e mais reacionários foram para a rua apoiar o golpe, algumas forças religiosas organizadas como a TFP, Tradição Família e Propriedade, uma reação nas ruas e a gente não foi capaz de entender que havia uma conjuntura que possibilitava um golpe no país. Nós não fomos capazes de ter essa visão, esse entendimento, o alcance das nossas análises não chegava a tal ponto de entender que podia haver uma reação golpista, principalmente, entre algumas lideranças civis, no caso de Minas Gerais, Magalhães Pinto que era o governador, no caso de São Paulo, Carvalho Pinto, que era o governador, e no caso do então estado de Guanabara, Carlos Lacerda, que era o governador. E a gente não foi capaz de entender, ver essa possibilidade do golpe. Não houve reação, eu diria que talvez, talvez, o Leonel Brizola, então governador do Rio Grande do Sul, foi quem teve alguma percepção e propôs aquela famosa organização dos grupos dos onze, que seriam células, podemos chamar assim, células de pessoas de esquerda e democratas, reunidas em 11 pessoas cada uma, para a possibilidade de uma reação conservadora da direita, uma possível reação capitalista. Então, no caso por exemplo, eu sou de Sabará, ali na grande BH, em Sabará chegamos a montar uns dois grupos dessa organização proposta pelo Brizola, de grupos dos onze, que não estava muito claro inclusive para que que seria, mas era uma tentativa de reação à possibilidade de uma reação capitalista, conservadora no país. Mas o golpe, na verdade, pegou o grupo dos onze não só no processo de organização como até em um processo de entendimento de para que que seria essa proposta de organização, não tinha organização. 

3 - A tortura foi uma das principais armas do terrorismo de Estado que manteve a ditadura no poder por 21 anos. Estima-se que 20 mil brasileiros tenham sofrido esta violência. Você foi um deles. Como isso impactou a sua vida, sua visão de mundo?

O regime aplicou a tortura e, muitos pensam até hoje que o objetivo da tortura era única e exclusivamente para levantar informações. Claro que era, nomes e endereços principalmente. Tanto que, normalmente, quando começavam as sessões de tortura os torturadores gritavam que você abrisse “pontos” e “aparelhos”. O que que era ponto? Era local de encontro. Inclusive, se a tortura te dobrasse até você levá-los (os torturadores) era uma forma de prender outros companheiros. E “aparelhos” eram os endereços que a gente usava. Então, um dos objetivos da tortura, claro, era esse de levantar pessoas envolvidas na organização de oposição, de esquerda e os endereços onde essas pessoas se escondiam, onde se guardava material e outras informações como se havia uma articulação com pessoas do poder, parlamentares, ou até com a igreja, com lideranças religiosas, ou alguma interlocução internacional. Esse era um dos objetivos da tortura. Agora, um objetivo importante da tortura era mesmo destruir a pessoa ideologicamente. A tortura tinha esse objetivo de levantar informações e o objetivo de ideológica e politicamente destruir a pessoa, liquidar ela, de que ela passasse a imaginar que não valia absolutamente nada. Inclusive, e isso aconteceu demais, na medida que a pessoa “abria coisas”, abria coisas no sentido de falar, que a gente usava esse verbo abrir, a pessoa abria coisas que não deveria abrir, ela se achava um lixo. A tortura foi muito aplicada com essa finalidade, com esse objetivo. Então, você sair de um processo de prisão e de tortura não é fácil não. Até porque a gente imaginava, uma boa parte dos presos políticos, das pessoas que eram organizadas clandestinamente, que foram levadas para a cadeia,  para o centro de tortura, a gente tinha uma certa ilusão de que o povo ia lá nos arrebatar. Eu mesmo, na organização que eu participava a APML - Ação Popular Marxista-Leninista do Brasil, a gente tinha uma avaliação que, com a possibilidade da nossa prisão, a gente seria arrebatado da cadeia pelas forças populares. E isso não aconteceu. Até pelo contrário, o movimento popular e social num primeiro momento recuou. E com razão, ninguém queria ir para a cadeia, ninguém queria morrer, ninguém queria ser torturado, ninguém queria desaparecer, porque era isso que estava acontecendo no país. Então, em um primeiro momento, você sai de um processo de prisão e tortura, que era um processo muito pesado, uma boa parte das pessoas que passaram por esse processo recuaram. Houve casos, poucos é claro, mas houve casos de loucura, de suicídio. Então, eu acho que você tinha que combinar… algumas organizações trabalhavam isso e outras não, infelizmente, mas algumas organizações trabalhavam muito na formação ideológica e política de seus militantes. No caso da ação popular (APML) tinha esse trabalho, eu participava de uma célula de trabalhadores que se reunia todo sábado para estudar, a gente foi numa época, inclusive, eu fui preso numa época que em a ação popular estava estudando muito Mao Tsé-Tung, a gente estava tentando acompanhar de perto as vitórias da Revolução Chinesa. Eu fui preso em 1971 e, a partir de 1968, 1969, a ação popular estudou muito Mao Tsé-Tung e os clássicos também do Marx e do Lênin. “O que fazer?” “Esquerdismo, doença infantil do comunismo” eram livros de leitura obrigatória na ação popular, eram o nosso catecismo. Então, essa formação me ajudou muito. Eu saí da cadeia já me engajei direto na luta por anistia, eu saí da cadeia em 1973 e não voltei imediatamente para o movimento sindical e nem para a Cidade Industrial onde eu morava, eu fiquei um ano ainda observando as coisas, mas eu já queria voltar para a Cidade Industrial, eu e a minha mulher na época, a Ana Lúcia, que também era uma militante de ação popular. E, um ano depois, nós voltamos para a Cidade Industrial, fomos morar no Eldorado e eu voltei para o movimento sindical e voltei a trabalhar na famosa organização da oposição sindical metalúrgica. Agora, alguns companheiros que não passaram por essa formação, houve uma desistência, um desânimo muito grande. Tortura não é fácil, tortura é um processo muito pesado e que a pessoa não sai fácil dela não. Eu te confesso que, ideológica e politicamente, eu tentei e tento até hoje não vacilar, ou seja, continuar na luta. Agora, alguns processos psicológicos eu vivo até hoje. Imagina, nós estamos em 2024 e, por exemplo, eu tenho verdadeiro horror de (sentir) dor até hoje, eu trato, faço análise, recentemente, eu tive um câncer e tive que fazer quatro sessões de quimioterapia muito dolorosas, de efeito muito estranho nas veias e eu fiz na base do, nunca tinha tomado na minha vida, eu fiz a base do Rivotril, porque eu pensei em desistir. Eu tenho um problema gravíssimo com dor até hoje, que eu não consigo tratar. Muita gente passou por processos que não conseguiu sair deles, tortura é muito pesado. 

4 - A Comissão da Verdade, instaurada durante o governo Dilma, identificou um total de 434 vítimas fatais da ditadura militar no Brasil: 191 pessoas assassinadas, 33 desaparecidas e já localizadas e 210 desaparecidas até hoje. Em termos de reparação, o que ainda precisa ser feito para o país acertar as contas com sua história?

O processo de reparação, eu diria que está ainda a passos de tartaruga. Em um primeiro momento, em Brasília, a própria Lei de Anistia foi parcial, porque foi recíproca, ou seja, acabou anistiando também os agentes da repressão envolvidos em prisões e torturas. A anistia alcançou também essas pessoas, o que é absurdo. O que é totalmente absurdo. Pessoas que cometeram crimes de tortura, de assassinados, têm desaparecidos até hoje. Essas pessoas deveriam ter sido investigadas, julgadas e condenadas, como no Uruguai e na Argentina, por exemplo. Então, no Brasil a conquista da anistia foi parcial… e já foi uma vitória.

Mas num primeiro momento, o processo da reparação, que se iniciou com a montagem da Comissão de Direitos Humanos no Congresso,  que foi uma iniciativa vitoriosa, que a gente não pode esquecer, do deputado do PT Nilmário Miranda, que, com a ajuda das famílias, iniciou um processo de investigação das mortes, das prisões, dos desaparecimentos. Ele conseguiu arregimentar boa parte das famílias e conseguiu  elucidar, do ponto de vista da perseguição do movimento operário urbano e do movimento popular urbano, conseguiu investigar 90% das mortes, das torturas, das prisões e dos desaparecimentos. Resultou em um livro que concorreu ao Prêmio jabuti, o “Dos filhos deste solo”, um livro que está esgotado, mas saiu em duas edições da Editora Boitempo. Nilmário me presenteou recentemente com uns três ou quatro exemplares, que tenho aqui. Então eu acho que foi uma vitória muito grande, mas ela foi na verdade, embora profunda e significativa, ainda foi parcial. Por exemplo, a participação das empresas na perseguição e até mesmo no desaparecimento e mortes de trabalhadores está sendo investigado agora. Eu mesmo prestei depoimento recentemente no Ministério Público Federal que, em parceria com a UFMG e a UFJF, investiga a participação da Companhia Siderúrgica Belgo Mineiro, onde eu trabalhava, que hoje é a ArcelorMittal, no processo de perseguição aos trabalhadores. Eu mesmo descobri e denunciei um médico da Belgo Mineira, o famoso Dr. Jean Paul Seeburger, um luxemburguês, que era agente da repressão. Eu o vi lá no Doi-CODI, quando fui preso, e ele examinava a Ana Lúcia Penna, minha mulher à época. Ele a examinava para saber se as torturas podiam continuar, porque ela foi presa com 33 pontos na vagina, internos e externos, porque ela tinha acabado de ter nosso primeiro filho, o Rodrigo, que nasceu de fórceps e, por isso, a médica foi obrigada a fazer umas cisões na vagina que foram suturadas com esses 33 pontos. Porque a Ana foi torturada com esses pontos. Nós fomos presos, o Rodrigo tinha 5 dias de nascido. E quem examinava a Ana Lúcia para saber se a tortura podia continuar era o Dr. Jean Paul Seeburger, médico da Belgo Mineira, que nós denunciamos e, na época, o Conselho Regional de Medicina se recusou a punir, por falta de provas, sendo que tinha o meu depoimento, o da Ana Lúcia e de mais outras presas, a Emeli, que era do movimento estudantil da época, e a Dalce Ricas, que também era do movimento estudantil e hoje é presidente da Associação Mineira de Meio Ambiente. Depois, o Movimento de Luta pela Anistia descobriu que ele era também médico do DOPS e da P2, um braço de investigação política secreta da Polícia Militar de Minas Gerais. Era um agente importante da repressão lotado dentro da companhia Belgo Mineira, hoje ArcelorMittal. Então, começou-se agora um processo de investigação da participação de empresas na perseguição, prisão, tortura e mortes de trabalhadores. O Nilmário Miranda está no Ministérios dos Direitos Humanos e, entre outras coisas, está envolvido na preparação de um ato em Juiz de Fora que vai lembrar o mundo do golpe de 1964. Eu também estou na organização deste ato e nós queremos até levar ônibus daqui e de Barbacena. Mas ele está envolvido também em uma investigação que ele não pode fazer enquanto deputado federal, que envolve o movimento camponês e os indígenas. Sabe-se que os órgãos de repressão também atuaram desaparecendo com lideranças camponesas e indígenas. E isso foi pouco investigado. É sabido, por exemplo, que a Belgo mineira tentou escravizar índios para o plantio de eucalipto. Não conseguiu, mas, possivelmente, a Belgo pode ter responsabilidade no desaparecimento de comunidades indígenas no Vale do Aço e no Vale do Rio Doce. Então, são muitas coisas ainda a serem investigadas, ainda há muito por fazer. A história do golpe e dos efeitos do golpe, da extensão do golpe ainda está para ser contada. 

5 - No início do ano passado, assistimos a mais uma tentativa de golpe militar no Brasil, apoiada por um grande número de brasileiros. Não aprendemos com o passado?  

Não, nós infelizmente não aprendemos com o passado. Eu diria que a gente está em um processo de aprendizado, mas que ainda há muito o que aprender. Principalmente falta uma grande discussão, não entre nós, mas com o povo brasileiro do valor, da riqueza e da importância da democracia, e do que ela nos traz, que é participação popular. Sem nenhuma pretensão, porque eu sou do PT, eu acho que em um primeiro momento, na sua fundação e até um determinado momento, o PT fez esta tentativa de abrir esta conversa com o povo brasileiro. eu continuo no PT, mas acho que deste ponto de vista, o partido falhou.  Nós não conseguimos abrir uma discussão bem feita com os setores populares da importância da democracia. A tentativa de golpe de 8 de janeiro mostrou claramente isso… a eleição de Bolsonaro mostrou isso com clareza. A disputadíssima eleição agora que nós tivemos que suar a camisa para eleger o Lula mostra que não aprendemos ainda não. Se você me perguntar como vamos fazer isso, eu não tenho a menor ideia. mas é preciso abrir esta discussão com setores da população, com o povo, da importância da gente voltar a nos organizar para alcançar e consolidar não a democracia, porque ela é um processo, cada dia se alcança um objetivo, a gente descansa um pouco com esta vitória, mas no dia seguinte acorda e diz: Ainda falta uma coisinha. A construção  democrática é uma coisa muito trabalhosa. Este é que é o grande problema: o povo brasileiro ainda não assimilou a importância que tem para todo mundo os valores da democracia e da vida democrática. 

Não aprendemos com o passado, mas estamos no processo? Estamos, a gente não pode é parar. Cada conquista diária de um milímetro já é uma conquista. Nós estamos vivendo isso de perto. A candidatura à prefeita de uma pessoa como a Lívia Guimarães é uma conquista, mesmo que ela não ganhe. Nós vamos trabalhar com muita firmeza para ela ganhar, é uma pessoa de origem simples. Se formou na faculdade de comunicação, aqui e m São João del-Rei, se elegeu vereadora, está no terceiro mandato, é combativa, mulher, é candidata pelo PT e recentemente obtivemos outra vitória que é o apoio do PSOL. é uma conquista democrática, porque a direita está se organizando para nos derrotar. Ela sabe da possibilidade de uma vitória da Lívia a gente pode fazer uma administração e ficar muitos anos na prefeitura. Então a direita está se organizando para nos derrotar porque não interessa à direita que o povo ocupe espaço, Este é um projeto - talvez o mais importante -  do capitalismo. Conquista democrática é uma coisa demorada. Então, se a gente não conseguir convencer o povo  da importância da democracia, das conquistas democráticas, a gente está longe ainda de uma vida melhor para todos. Então, esta é para mim a plataforma principal de quem está na luta, como é o nosso caso: convencer as pessoas de que a melhor coisa do mundo é a democracia. A gente tem que ser radicalmente contra a ditadura, contra o autoritarismo. e qual é a nossa contraproposta? É a democracia, não tem outra coisa. 

 

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